Conto retirado do livro "Crônica de um Amor Louco de Charles Bukowski - Editora L&PM (2007)
Das 5 irmãs, Cass era a
mais moça e a mais bela. E a mais linda mulher da cidade. Mestiça de índia, de
corpo flexível, estranho, sinuoso que nem cobra e fogoso como os olhos: um
fogaréu vivo ambulante. Espírito impaciente para romper o molde incapaz de retê-lo.
Os cabelos pretos, longos e sedosos, ondulavam e balançavam ao andar. Sempre
muito animada ou então deprimida, com Cass não havia esse negócio de meio
termo. Segundo alguns, era louca. Opinião de apáticos. Que jamais poderiam
compreendê-la. Para os homens, parecia apenas uma máquina de fazer sexo e pouco
estavam ligando para a possibilidade de que fosse maluca. E passava a vida a
dançar, a namorar e beijar. Mas, salvo raras exceções, na hora agá sempre
encontrava forma de sumir e deixar todo mundo na mão.
As irmãs
a acusavam de desperdiçar sua beleza, de falta de tino; só que Cass não era
boba e sabia muito bem o que queria: pintava, dançava, cantava, dedicava-se a
trabalhos de argila e, quando alguém se feria, na carne ou no espírito, a pena
que sentia era uma coisa vinda do fundo da alma. A mentalidade é que
simplesmente destoava das demais: nada tinha de prática. Quando seus namorados
ficavam atraídos por ela, as irmãs se enciumavam e se enfureciam, achando que
não sabia aproveitá-los como mereciam. Costumava mostrar-se boazinha com os
feios e revoltava-se contra os considerados bonitos — “uns frouxos”, dizia,
“sem graça nenhuma. Pensam que basta ter orelhinhas perfeitas e nariz bem
modelado… Tudo por fora e nada por dentro…” Quando perdia a paciência, chegava
às raias da loucura; tinha um gênio que alguns qualificavam de insanidade
mental.
O pai
havia morrido alcoólatra e a mãe fugira de casa, abandonando as filhas. As
meninas procuraram um parente, que resolveu interná-las num convento.
Experiência nada interessante, sobretudo para Cass. As colegas eram muito
ciumentas e teve que brigar com a maioria. Trazia marcas de lâmina de gilete
por todo o braço esquerdo, de tanto se defender durante suas brigas. Guardava,
inclusive, uma cicatriz indelével na face esquerda, que em vez de empanar-lhe a
beleza, só servia para realçá-la.
Conheci
Cass uma noite no West End Bar, Fazia vários dias que tinha saído do convento.
Por ser a caçula entre as irmãs, fora a última a sair. Simplesmente entrou e
sentou do meu lado. Eu era provavelmente o homem mais feio da cidade — o que
bem pode ter contribuído.
— Quer um
drinque? — perguntei.
— Claro,
por que não?
Não creio
que houvesse nada de especial na conversa que tivemos essa noite. Foi mais a
impressão que causava. Tinha me escolhido e ponto final. Sem a menor coação.
Gostou da bebida e tomou varias doses. Não parecia ser de maior idade, mas, não
sei como, ninguém se recusava a servi-la. Talvez tivesse carteira de identidade
falsa, sei lá. O certo é que toda vez que voltava do toalete para sentar do meu
lado, me dava uma pontada de orgulho. Não só era a mais linda mulher da cidade
como também das mais belas que vi em toda minha vida. Passei-lhe o braço pela
cintura e dei-lhe um beijo.
— Me acha
bonita? — perguntou.
— Lógico
que acho, mas não é só isso… é mais que uma simples questão de beleza…
— As
pessoas sempre me acusam de ser bonita. Acha mesmo que eu sou?
— Bonita
não é bem o termo, e nem te faz justiça.
Cass
meteu a mão na bolsa. Julguei que estivesse procurando um lenço. Mas tirou um
longo grampo de chapéu. Antes que pudesse impedir, já tinha espetado o tal
grampo, de lado, na ponta do nariz. Senti asco e horror. Ela me
olhou e riu.
— E
agora, ainda me acha bonita? O que é que você acha agora, cara?
Puxei o
grampo, estancando o sangue com o lenço que trazia no bolso. Diversas pessoas,
inclusive o sujeito que atendia no balcão, tinham assistido a cena. Ele veio
até a mesa:
— Olha — disse para Cass, — se fizer isso de novo, vai ter que dar o fora. Aqui
ninguém gosta de drama.
— Ah, vai te foder, cara!
— É
melhor não dar mais bebida pra ela — aconselhou o sujeito.
— Não tem
perigo — prometi.
— O nariz
é meu —
protestou Cass, — faço dele o que bem entendo.
— Não
faz, não — retruquei, — porque isso me dói.
— Quer
dizer que eu cravo o grampo no nariz e você é que sente dor?
— Sinto,
sim. Palavra.
— Está
bem, pode deixar que eu não cravo mais. Fica sossegado.
Me
beijou, ainda sorrindo e com o lenço encostado no nariz. Na hora de fechar o
bar, fomos para onde eu morava. Tinha um pouco de cerveja na geladeira e
ficamos lá sentados, conversando. E só então percebi que estava diante de uma
criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traia sem se dar conta. Ao mesmo
tempo que se encolhia numa mistura de insensatez e incoerência. Uma verdadeira
preciosidade. Uma jóia, linda e espiritual. Talvez algum homem, uma coisa
qualquer, um dia a destruísse para sempre. Fiquei torcendo para que não fosse
eu.
Deitamos
na cama e, depois que apaguei a luz, Cass perguntou:
— Quando
é que você quer transar? Agora ou amanhã de manhã?
— Amanhã
de manhã — respondi, — virando de costas pra ela.
No dia
seguinte me levantei e fiz dois cafés. Levei o dela na cama. Deu uma
risada.
— Você é
o primeiro homem que conheço que não quis transar de noite.
— Deixa
pra lá — retruquei, — a gente nem precisa disso.
— Não,
pára aí, agora me deu vontade. Espera um pouco que não demoro.
Foi até o
banheiro e voltou em seguida, com uma aparência simplesmente sensacional — os
longos cabelos pretos brilhando, os olhos e a boca brilhando, aquilo brilhando…
Mostrava o corpo com calma, como a coisa boa que era. Meteu-se em baixo do
lençol.
— Vem de
uma vez, gostosão.
Deitei na
cama.Beijava
com entrega, mas sem se afobar. Passei-lhe as mãos pelo corpo todo, por entre
os cabelos. Fui por cima. Era quente e apertada. Comecei a meter devagar,
compassadamente, não querendo acabar logo. Os olhos dela encaravam, fixos, os
meus.
— Qual é
o teu nome? — perguntei.
— Porra,
que diferença faz? — replicou.
Ri e
continuei metendo. Mais tarde se vestiu e levei-a de carro de novo para o bar.
Mas não foi nada fácil esquecê-la. Eu não andava trabalhando e dormi até às 2
da tarde. Depois levantei e li o jornal. Estava na banheira quando ela entrou
com uma folhagem grande na mão — uma folha de inhame.
— Sabia
que ia te encontrar no banho — disse, — por isso trouxe isto aqui pra cobrir
esse teu troço aí, seu nudista.
E atirou
a folha de inhame dentro da banheira.
— Como
adivinhou que eu estava aqui?
—
Adivinhando, ora.
Chegava
quase sempre quando eu estava tomando banho. O horário podia variar, mas Cass
raramente se enganava. E tinha todos os dias a folha de inhame. Depois a gente
trepava.
Houve uma
ou duas noites em que telefonou e tive que ir pagar a fiança para livrá-la da
detenção por embriaguez ou desordem.
— Esses
filhos da puta — disse ela, — só porque pagam umas biritas pensam que são donos
da gente.
— Quem
topa o convite já está comprando barulho.
—
Imaginei que estivessem interessados em mim e
não apenas no meu corpo.
— Eu
estou interessado em você e também no
seu corpo. Mas duvido muito que a maioria não se contente com o corpo.
Me
ausentei seis meses da cidade, vagabundeei um pouco e acabei voltando. Não
esqueci Cass, mas a gente havia discutido por algum motivo qualquer e me deu
vontade de zanzar por aí. Quando cheguei, supus que tivesse sumido, mas nem
fazia meia hora que estava sentado no West End Bar quando entrou e veio sentar
do meu lado.
— Como é,
seu sacana, pelo que vejo já voltou.
Pedi
bebida para ela. Depois olhei. Estava com um vestido de gola fechada. Cass
jamais tinha andado com um traje desses. E logo abaixo de cada olheira,
espetados, havia dois grampos com ponta de vidro. Só dava para ver as pontas,
mas os grampos, virados para baixo, estavam enterrados na carne do rosto.
— Porra,
ainda não desistiu de estragar sua beleza?
— Que
nada, seu bobo, agora é moda.
— Pirou
de vez.
— Sabe
que sinto saudade — comentou.
— Não tem
mais ninguém no pedaço?
— Não, só
você. Mas agora resolvi dar uma de puta. Cobro dez pratas. Pra você, porém, é
de
graça.
— Tira
esses grampos daí.
—
Negativo. É moda.
— Estão
me deixando chateado.
— Tem
certeza?
— Claro
que tenho, pô.
Cass
tirou os grampos devagar e guardou na bolsa.
— Por que
é que faz tanta questão de esculhambar o teu rosto? — perguntei. — Quando vai
se
conformar com a idéia de ser bonita?
— Quando
as pessoas pararem de pensar que é a única coisa que eu sou. Beleza não vale
nada e
depois não dura. Você nem sabe a sorte que tem de ser feio. Assim,
quando alguém simpatiza contigo, já sabe que é por outra razão.
— Então
tá. Sorte minha, né?
— Não que
você seja feio. Os outros é que acham. Até que a tua cara é bacana.
— Muito
obrigado.
Tomamos
outro drinque.
— O que
anda fazendo? — perguntou.
— Nada.
Não há jeito de me interessar por coisa alguma. Falta de ânimo.
— Eu
também. Se fosse mulher, podia ser puta.
— Acho
que não ia gostar de um contato tão íntimo com tantos caras desconhecidos.
Acaba
enchendo.
— Puro
fato, acaba enchendo mesmo. Tudo acaba enchendo.
Saímos
juntos do bar. Na rua as pessoas ainda se espantavam com Cass. Continuava
linda, talvez mais do que antes.Fomos
para o meu endereço. Abri uma garrafa de vinho e ficamos batendo papo. Entre
nós dois a conversa sempre fluía espontânea. Ela falava um pouco, eu prestava
atenção, e depois chegava a minha vez. Nosso diálogo era sempre assim, simples,
sem esforço nenhum. Parecia que tínhamos segredos em comum. Quando se
descobria um que valesse a pena, Cass dava aquela risada — da maneira que só
ela sabia dar. Era como a alegria provocada por uma fogueira. Enquanto
conversávamos, fomos nos beijando e aproximando cada vez mais. Ficamos com
tesão e resolvemos ir para a cama, Foi então que Cass tirou o vestido de gola
fechada e vi a horrenda cicatriz irregular no pescoço — grande e saliente.
— Puta
que pariu, criatura — exclamei, já deitado. — Puta que pariu. Como é que você
foi me fazer
uma coisa dessas?
—
Experimentei uma noite, com um caco de garrafa. Não gosta mais de mim? Deixei
de ser bonita?
Puxei-a
para a cama e dei-lhe um beijo na boca. Me empurrou para trás e riu.
— Tem
homens que me pagam as dez pratas, aí tiro a roupa e desistem
de transar. E eu guardo o dinheiro pra mim. É engraçadíssimo.
— Se é —
retruquei, — estou quase morrendo de tanto rir… Cass, sua cretina, eu amo você…
mas pára com esse negócio de querer se destruir. Você é a mulher mais cheia de
vida que já encontrei.
Beijamos
de novo. Começou a chorar baixinho. Sentia-lhe as lágrimas no rosto. Aqueles
longos cabelos pretos me cobriam as costas feito mortalha. Colamos os corpos e
começamos a trepar, lenta, sombria e maravilhosamente bem.
Na manhã
seguinte acordei com Cass já em pé, preparando o café. Dava a impressão de
estar perfeitamente calma e feliz. Até cantarolava. Fiquei ali deitado,
contente com a felicidade dela. Por fim veio até a cama e me sacudiu.
—
Levanta, cafajeste! Joga um pouco de água fria nessa cara e nessa pica e vem
participar da festa!
Naquele
dia convidei-a para ir à praia de carro. Como estávamos na metade da semana e o
verão ainda não tinha chegado, encontramos tudo maravilhosamente deserto. Ratos
de praia, com a roupa em farrapos, dormiam espalhados pelo gramado longe da
areia. Outros, sentados em bancos de pedra, dividiam uma garrafa de bebida
tristonha. Gaivotas esvoaçavam no ar, descuidadas e no entanto aturdidas.
Velhinhas de seus 70 ou 80 anos, lado a lado nos bancos, comentavam a venda de
imóveis herdados de maridos mortos há muito tempo, vitimados pelo ritmo e
estupidez da sobrevivência. Por causa de tudo isso, respirava-se uma atmosfera
de paz e ficamos andando, para cima e para baixo, deitando e espreguiçando-nos
na relva, sem falar quase nada. Com aquela sensação simplesmente gostosa de
estar juntos. Comprei sanduíches, batata frita e uns copos de bebida e nos
deixamos ficar sentados, comendo na areia. Depois me abracei a Cass e dormimos
encostados um no outro durante quase uma hora. Não sei por quê, mas foi melhor
do que se tivessemos transado. Quando acordamos, voltamos de carro para onde eu
morava e fiz o jantar. Jantamos e sugeri que fossemos para a cama. Cass hesitou
um bocado de tempo, me olhando, e ao respondeu, pensativa:
— Não.
Levei-a
outra vez até o bar, paguei-lhe um drinque e vim-me embora. No dia seguinte
encontrei serviço como empacotador numa fábrica e passei o resto da semana
trabalhando. Andava cansado demais para cogitar de sair à noite, mas naquela
sexta-feira acabei indo ao West End Bar. Sentei e esperei por Cass. Passaram-se
horas. Depois que já estava bastante bêbado, o sujeito que atendia no balcão me
disse:
— Uma
pena o que houve com sua amiga.
— Pena
por quê? — estranhei.
—
Desculpe. Pensei que soubesse.
— Não.
— Se
suicidou. Foi enterrada ontem.
—
Enterrada? — repeti.
Estava
com a sensação de que ela ia entrar a qualquer momento pela porta da rua. Como
poderia estar morta?
— Sim,
pelas irmãs.
— Se
suicidou? Pode-se saber de que modo?
— Cortou
a garganta.
— Ah. Me
dá outra dose.
Bebi até
a hora de fechar. Cass, a mais bela das 5 irmãs, a mais linda mulher da cidade.
Consegui ir dirigindo até onde morava. Não parava de pensar. Deveria ter insistido para
que ficasse comigo em vez de aceitar aquele “não”. Todo o seu jeito era de quem
gostava de mim. Eu é que simplesmente tinha bancado o durão, decerto por
preguiça, por ser desligado demais. Merecia a minha morte e a dela. Era um cão.
Não, para que pôr a culpa nos cães? Levantei, encontrei uma garrafa de vinho e
bebi quase inteira. Cass, a garota mais linda da cidade, morta aos vinte anos.
Lá fora,
na rua, alguém buzinou dentro de um carro. Uma buzina fortíssima, insistente.
Bati a garrafa com força e gritei:
— MERDA!
PÁRA COM ISSO, SEU FILHO DA PUTA!
A noite
foi ficando cada vez mais escura e eu não podia fazer mais nada.
Recomendação Pessoal: Bukowski. Sempre.
Por: Virgínia Fróes
De: Natal - RN
Email: virginia@revistafriday.com.br
Você já curtiu a Revista FRIDAY no Facebook? faça como eles ;)