Era mais um domingo qualquer, daqueles em que o completo ócio toma conta de mim, sem indícios de novidade. Me sinto um pouco sozinha. Inesperadamente, enquanto zapeio pelos canais intermináveis da televisão, lá está ela. Ruth Reichl falando diretamente comigo, em um programa do Discovery Channel.
Há tempos que não pensava nela. Seu último livro, Alhos & Safiras, emprestei a uma amiga. Os outros, creio eu, foi soterrado por vários títulos e muita poeira em alguma prateleira da minha estante. Com o fim do estoque de ideias na cabeça e a escassez de mantimentos na despensa, parei de ler e escrever sobre comida. Até, claro, que ela volta, estrategicamente falando-me sobre pão caseiro e batatas.
A receita sobre a qual ela estava falando é muito simples: batatas picadas, sal, açúcar, fubá e água. A mistura deve descansar por algumas horas no forno desligado. O líquido deve ser misturado a quatro xícaras de farinha e as batatas devem ser retiradas – a partir deste passo, na verdade, elas nem importam mais. Tudo aquilo tem um cheiro que beira o insuportável. Quando unida ao punhado de farinha, aquela água fermenta que é uma beleza. Está totalmente podre, mas está viva.
Basta agora adicionar os outros ingredientes e fazer o pão caseiro. O resultado, evidentemente, é delicioso. Nenhum gosto é tão clássico ou reconfortante quanto o sabor deste pão de batatas podres. E nenhum outro pão no mundo – ouso dizer - tem aparência tão bela.
![]() |
Reprodução / Imagem meramente ilustrativa |
Quando o programa acabou, me peguei pensando sobre essa questão. Por mais que eu evite, sou daquelas que, algumas vezes, julga um livro pela capa. Mas, convenhamos, é mesmo difícil conseguir ver em algo fétido e estragado, a possibilidade de algo realmente bom e maravilhoso – e isso não vale apenas quando o assunto é comida.
Só então que percebo: é justamente a parte podre que carrega o sabor tão especial. Um bom prato pode ser criado com qualquer tipo de alimento – tudo depende do chef, certo? E ainda assim, o queimado do pão, as bordas duras do bolo, o arroz empapado – há sempre quem goste.
Em última instância, olho no espelho e compreendo: são nossas falhas que nos fazem interessantes, nossos pecados que nos fazem saborosos, nossos defeitos que nos fazem reais. E isso tudo que nos faz, antes de qualquer outra coisa, humanos.
Provo o pão de batatas podres e me apaixono instantaneamente. Sua casquinha ficou crocante pelo tempo a mais que o esqueci dentro do forno. Seu aspecto e aroma doce me confundiram quando o provei e senti o gosto de batatas assadas. Um camote que acidentalmente caiu entre os tubérculos na assadeira deixou uma cor laranja linda naquela massa caseira.
Silenciosamente agradeço. Não fosse tudo isso, não seria essa a minha nova receita preferida. Penso, então, que tenho eu minhas próprias características, e que não fossem os livros, os amores, as amoras e as receitas, se não fosse essa mania de matutar na cozinha ou a pressa causadora de cortes nos dedos e queimaduras nos braços, não seria eu.
Escolho então este pedaço de pão de batatas podres para começar mais um dia. Sentada na mesa do café, como com gosto de quem não se alimenta há tempos. Como mais uma vez, depois de ter bem comido, pelo mesmo motivo que me faz olhar para o lado todos os dias e dar uma chance pra vida me surpreender. Como e cozinho para ter a alma bem acompanhada.
Por: Bianca Chaer
De: São Paulo - SP
Email: bianca.chaer@gmail.com